O “jeitinho” nosso de cada dia

Já fiz vários artigos falando da “doença social” que faz parte da cultura política brasileira, o tal de “jeitinho brasileiro”.

Quando me refiro a uma “doença social” estou falando de algo que está enraizado no funcionamento da sociedade. Estou fazendo uma analogia entre o corpo humano e o corpo social, pensando que estamos ligados neste corpo por várias conexões: sejam familiares, sejam educacionais, de trabalho ou até mesmo pelas relações políticas. O jeitinho brasileiro também é considerado como uma forma de “navegação social”, que circula pela corrente sanguínea desse corpo social, ou seja, está presente nos lugares mais improváveis das relações sociais, no dia a dia das pessoas.

O “jeitinho”, inicialmente sinônimo de “criatividade”, adaptou-se para a capacidade de resolver problemas ou tarefas utilizando subterfúgios, burlando regras, utilizando-se de redes de relacionamentos e se constituindo como uma forma de “levar vantagem”. E, assim, a doença social vai crescendo. Uma pessoa fica feliz quando se dá bem em cima de outra pessoa.

Do ponto de vista prático, é preciso que se entenda que, em uma democracia republicana, o “eu me dei bem” pode ser resultante de uma ação inversa “alguém se deu mal”.

O jeitinho, como doença social, começa dentro de casa, quando um irmão passa a perna no outro e é tido como mais esperto. O jeitinho brasileiro está presente na omissão dos pais, que não fazem nada quando isso acontece.

O jeitinho brasileiro está presente nas escolas, quando o aluno cola na prova e ainda conta isso para os colegas, como se fosse um grande feito. O jeitinho brasileiro está presente quando o professor vê o aluno colar e não faz nada, com o argumento de que não quer se incomodar.

Nas relações de trabalho o jeitinho pode estar presente de várias formas. Quando um funcionário bate o ponto para o outro ou quando um gerente ignora as práticas desleais entre colegas de trabalho, com o argumento de que essas práticas estimulam a competição.

O jeitinho está presente quando se vende o sinal de internet para o vizinho ou quando uma revenda de automóveis coloca seus carros expostos nos canteiros de uma avenida.

O jeitinho está presente quando se pede para um amigo funcionário público passar seu nome na frente, para conseguir uma vaga na creche. E o jeitinho também está presente quando o funcionário público leva produtos para vender em seu local de trabalho.

Analisando esses exemplos poderíamos dizer que se tratam de comportamentos individuais que mostram falta de ética ou de caráter de quem o pratica. O problema é que essas ações são realizadas de forma sistêmica, por muitas pessoas e vão se tornando “normais”.

E, como um faz, o outro se sente no direito de fazer e assim o jeitinho vai tomando conta do corpo da sociedade.

O jeitinho brasileiro aproxima o favor da corrupção, servindo como “ponte de acesso” entre conceitos tão distintos. O jeitinho é uma forma de corrupção! Na prática, o jeitinho é a porta de entrada para a corrupção, que começa com a perspectiva de tirar vantagem pessoal, de se beneficiar com algo, a conhecida lei de Gérson que diz que “o importante é levar vantagem em tudo”.

A mudança deste cenário requer etapas integradas: a) A consciência desta realidade; b) O debate sobre esta realidade, refletindo e deliberando o que é certo e o que é errado; c) A educação, que deve começar dentro de casa; d) A prática, onde se abre mão de vantagens pessoais, trabalhando em prol do bem comum.

 

Elis Radmann é cientista social e política. Fundou o IPO – Instituto Pesquisas de Opinião em 1996. Utilizando a ciência como vocação e formação, se tornou uma especialista em comportamento da sociedade. Socióloga (MTb 721), obteve o Bacharel em Ciências Sociais na UFPel e tem especialização em Ciência Política pela mesma universidade. Mestre em Ciência Política pela UFRGS e professora universitária, Elis é diretora e Conselheira da Associação Brasileira de Pesquisadores de Mercado, Opinião e Mídia (ASBPM) www.asbpm.org.br

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